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terça-feira, setembro 20, 2011

Melancolia

(Kirsten Dunst - Justine - em Melancolia)
(Ophelia, de Millais)

(obs: não é um review e está cheio de spoilers)

Assim que o filme começou tive um certo pânico e pensei: oh, não! Estou assistindo um 2001! E no cinema! Socorro, não dá pra pausar, ir comer alguma coisa e voltar!? Pra onde correr?
As cenas iniciais são lindas, mas o fundo de ópera (o prelude de Tristão e Isolda, de Wagner - fiz questão de procurar), e a câmera lenta de pássaros morrendo, cavalos caindo, planetas se chocando e "Ofélias" (referência acima, Millais) boiando no rio me deixaram apreensiva. Se soubesse que elas logo terminariam teria apreciado a arte com mais atenção ao invés de ficar procurando desesperadamente um lugar para onde correr. :)

A referência à injustiçada (?) noiva de Hamlet - sinônimo de desequilíbrio e loucura, para alguns causado justamente pelos relacionamentos amorosos - é bem sutil, mas pontual, o que fez minhas antenas feministas se levantarem na mesma hora, mas elas foram se abaixando gradualmente, contentes com o decorrer da história, já que não há nada de submisso na relação da personagem de Kirsten Dunst com os homens, apesar da história deixar nítida sua dificuldade de relacionamento com qualquer figura humana masculina e adulta: o noivo que faz planos e ama sozinho, o pai ausente, o chefe abusivo, o cunhado inutilmente protetor, o ingênuo futuro colega de trabalho. Em contraponto, outras figuras masculinas da história - o sobrinho e o seu cavalo favorito, cujo nome me esqueci - , que aparentemente oferecem a ela amor gratuito e livre de grandes cobranças, são objetos de atenção e cuidado.

Justine é uma mulher livre e que só faz o que quer. Chega a hora que quer à cerimônia de seu casamento, deixando dezenas de convidados esperando, faz sexo com quem quer na hora que tem vontade, despreza as convenções sociais, abandona a festa para dormir, tomar banho ou colocar o sobrinho para dormir, chuta as hierarquias, ignora o que não lhe interessa, e ainda assim parece sempre infeliz. Não se encaixa, não vê sentido no que parece ser importante para o resto do mundo. Tenta sorrir, mas não consegue conter a tristeza. Culpa da mãe louca e ultra sincera, do pai mulherengo e completamente ausente, da irmã superprotetora e conivente, do mundo que parece ceder a todas as suas vontades e caprichos, ou culpa dela mesma? Como saber? A cena do começo da limosine que não consegue avançar pela estrada estreita é uma ótima metáfora para o que sente Justine - alguém que pretende ser o que não é.

Claire, a irmã de Justine, papel da lindíssima Charlotte Gainsbourg (sim, esteticamente gosto mais dela do que da Kirsten, também muito bonita, mas de beleza mais óbvia), representa a mulher com a família perfeita e a vida perfeita, o casamento irretocável, que vive num castelo luxuoso com seu marido riquíssimo e um belo filho (me apaixonei pelo garotinho, claro S2). Apesar de declarar seu ódio momentâneo pela irmã algumas vezes, ela procura não perder o controle e se preocupa em abafar as loucuras de todos, mantendo as aparências de vida de comercial de margarina. Ela se apóia com todas as forças nos ombros do marido, seu porto seguro e referência, pois é quem "sabe das coisas" e "estuda as coisas", e é claro que quando ele "cai" ela despenca em espiral até o fundo do poço de frivolidades.

O fim do mundo e o planeta Melancholia que se aproxima quase ganham papel secundário diante de tantos mergulhos nas personalidades e estranhezas das protagonistas. Acho que era o que o diretor pretendia, mostrar que mesmo numa situação de catástrofe inevitável, nossos sofrimentos e dores particulares permanecem egoisticamente em primeiro plano. Entre a forma como cada uma das irmãs lida com o fim do mundo - Justine reagindo com desprezo e superioridade "eu já sabia" e Claire com desespero e futilidade "Quero tomar uma taça de vinho" - fico ainda com a fé do garotinho, que de olhos fechados aguarda pelo fim com a certeza de que sua caverna mágica o protegerá de todo e qualquer mal. :)

Saí do cinema meio chocada e digerindo o filme. No carro, chorei pacas com algumas fichas caindo. Resultado final muito positivo, adoro filme com catarse :)

sexta-feira, dezembro 03, 2010

The End

Porque esse texto também faz parte da série de separações.



Joker quase fingiu que se assustou quando a porta da sala bateu forte derrubando no chão o calendário de 2004 pendurado do lado de dentro, mas achou que não valeria a pena dar esse gostinho para ela. Não tirou, portanto, os olhos do notebook e permaneceu na mesma posição que estava, as mãos no teclado, as pernas bem abertas, a cabeça levemente virada de lado, o pé esquerdo balançando impaciente, como sempre.

Melissa também não se espantou quando, ao entrar, deixando a porta bater de propósito, o encontrou novamente virado de costas para o computador com a mesma roupa da última vez. Já fazia o que, uns dois anos que eles não se viam? Sim, ela calculava mais ou menos isso. Aquela bermuda jeans desfiada nas barras talvez já pudesse parar em pé sozinha, de tão dura e encardida. A pulseira hippie feita pelo Zee com sementes variadas ainda não havia arrebentado, impressionante. Já era praticamente impossível ler a frase estampada nas costas da camiseta laranja desbotada, mas ela sabia o que era: "Viddy well, little brother." O tênis, originalmente azul claro, parecia preto. O chapéu côco com parte da aba etrategicamente virada não era exatamente um bom sinal.

Pra que olhar, se ele poderia sentir a presença dela há quilômetros de distância? Seus sentidos aguçados a detectariam para sempre. Aquele perfume ridiculamente comum, fresco e amadeirado, reagia de um modo completamente especial em contato com a pele dela, e essa fragrância meio exótica tinha o poder de fazê-lo relembrar de sons, gostos, texturas, cores e histórias. Ele gostava daquele gatilho que o cheiro dela provocava nele e, portanto, já havia decidido que não faria nada para mudá-lo. Afora os sentidos aguçados, havia uma conexão ainda mais forte e impossível de se conter. Como deter a mão de Malkav? Era incontrolável, a trama seguia sozinha, e eles sempre estariam nela, conectados.

Foi por conta da trama que ela havia vindo. Foi praticamente direcionada, mas ela não sabia muito bem se por ele ou por completo acaso. As vozes nunca foram tão claras com ela quanto eram com ele, mas estavam mais fortes e objetivas. Sentia falta do que ele representava. Uma proteção diferente, como uma barra de ferro meio bamba no carrinho da montanha russa. Aquela segurança que você nunca tem certeza mesmo se vai adiantar de algo, mas que é onde você se agarra quando a descida vai se aproximando. Ela gostava do jeito descontraído dele, das risadas sempre garantidas, daquela empolgação quase infantil diante das novidades. Ele era diferente dos outros vampiros, porque a idade simplesmente parecia não pesar sobre suas costas.

- Foram como ecos distantes ou estavam mais nítidas dessa vez? - ele perguntou de repente
Ela engoliu em seco antes de murmurar:
- Altas e claras.
- Que bom. Legal. Fico feliz por você...
- Eu vim porque...

Ele arrastou a cadeira de rodinhas para trás, virou-se e se colocou de pé tão rápido que ela deu um pulo na direção da parede, arregalando os olhos. Ele riu alto.
- Como sempre, assustada... Será que nunca vai mudar?


- Sempre tive dificuldade de reagir às suas surpresas
- Achei que gostava delas
- Eu gosto.

A expressão dele relaxou um pouco. Olhou para aquela menina de roupas indianas, pele muito clara, sandálias rasteiras. Os cabelos vermelhos e curtos pareciam brilhar de tão intensos. Ele se aproximou com o olhar terno e fingiu tocar nela, apesar de manter as mãos à distância. Fez um "carinho" nos cabelos, sem tocá-la, passou as costas da mão pelo seu rosto, sem sequer encostar em sua pele. Era como uma mímica, um teatro. Ela fechou os olhos por alguns instantes quando recebeu um tapa violento, que a jogou no chão do quarto.

- NÃO ABRA A GUARDA, MELISSA!! NÃO SEJA IDIOTA!! - ele gritou, fazendo as prateleiras da estante tremerem.

Lágrimas de sangue escorreram pelo rosto límpido da garota. Ela sabia, ela sabia. A dor era mais forte por dentro do que por fora.

- Foi isso que eu senti morrer, não foi?
Ele voltou a se sentar diante do computador, não sem antes estalar os dedos das mãos e o pescoço, como ele costumava fazer quando estava nervoso. A perna dele passou a se movimentar ainda mais impaciente, e o olhar vagava pela tela enquanto os dedos comandavam o teclado arrastando para baixo imagens e textos que ela não conseguia identificar bem. Falou ainda em tom alterado, e sem olhar para ela:

- O amor foi morrendo um pouco por dia, junto com toda a esperança que eu trazia.
- Eu não tive culpa, Joker...
- Ninguém nunca tem, meu bem - e dessa vez sua frase foi verdadeiramente carinhosa - ninguém nunca tem...

Ela se levantou devagar, limpou o rosto com as duas mãos e andou até o lado dele, dizendo em seguida, tentando dar firmeza à voz:

- Eu vim porque preciso que você me deixe ir...
- Não muda nada eu deixar enquanto você mesma não quiser...
- Mas eu quero!
Ele olhou para ela com seriedade:
- Então, se é mesmo assim, eu deixo.

Se encararam por alguns segundos, Melissa sem saber o que dizer. Ele resolveu falar antes:

- Não achou que ia ser tão fácil?
- E quem disse que foi fácil?

Ele estava satisfeito. Tirou o chapéu e colocou suavemente na cabeça dela. Ela aceitou o gesto, como uma verdadeira pupila deve fazer.

- Não pense que é um presente. É mais uma sina do que um agrado.
- Eu conheço bem o efeito.
- Ao mesmo tempo, ele é a força que te faltava. A gana mesmo. Mas tem consequências. Todas aquelas que você já sabe.

Ela balançou a cabeça, concordando. Já era hora de ir. Ela ainda lamentou:
- Não tenho nada pra te deixar.
Ele riu.
- Já está tudo comigo, não se preocupe.

O riso se transformou num sorriso meio forçado, sem mostrar os dentes, uma expressão que ele tinha o costume de fazer quando queria dizer que estava tudo bem, mas na verdade não estava. Fez isso e voltou ao computador. Ela olhou para ele pela última vez, embargada. Nao era fácil, mas era preciso. Saiu então da casa com seu chapéu côco, pronta para, talvez, nunca mais voltar.

"...Quando eu me sinto um
pouco rejeitada
Me dá um nó na garganta
Choro até secar a alma
de toda mágoa
Depois eu parto pra outra
Como um mutante
No fundo sempre sozinha
Seguindo o meu caminho
Ai de mim que sou romântica!..."

(Mutante - Rita Lee)

quarta-feira, junho 30, 2010

É o fim? Ou só mais um começo?


As batidas nervosas na porta do trailer quase a fizeram borrar a forte maquiagem azul que ela passava num dos olhos. Faltava pouco para começar o espetáculo, afinal
- Cassandra, querida, sou eu, abra rápido, por favor!
Ela correu sorrindo, o coração aos saltos.
- Nossa, você veio tão ced...
Quando ela abriu a porta foi empurrada pra dentro por Irwin, que fechou os trincos do trailer nervosamente. Estava sério, agitado, respiração ofegante, olhava em volta como quem teme algo muito grave. Certificou-se de que a cortina estava fechada antes de falar qualquer coisa. Cassandra estava nervosa já vendo o rapaz daquela forma. Perguntou então, aflita:
- Céus, que está acontecendo? O que houve, Irw??
- psiuu, minha querida, por favor, fale baixo, eu tenho pouco tempo pra explicar.
Ela baixou o tom de voz
- Então fale de uma vez, estou ficando nervosa!
- Eu preciso ir!
- Ir pra onde?
- Embora, querida. Pra longe daqui, infelizmente.
- Mas por que, o que está acontecendo?
- Infelizmente eu não posso explicar da forma como você merece. Acredite, é melhor pra você não saber nada, absolutamente nada.
- Eu não tô entendendo direito, Irw... Não vá assim, tenho certeza que podemos resolver esse problema, qualquer que seja ele, de alguma outra forma. O que é? Está devendo dinheiro a alguém? A gente pode pensar numa forma de resolver isso, e...
- Não, não, Cassandra... Infelizmente não é nada que se possa resolver com dinheiro. Eu vim porque precisava olhar nos seus olhos e fazer um pedido egoísta. O mais egoísta de todos. Eu já te conheço, já sei qual será a resposta, mas eu precisava pedir. Para poder ir em paz...
- Pois peça, então!
- Venha comigo!! Venha comigo, venha agora comigo...
- Ir pra onde?
- Pro mundo, pra onde for, eu não sei pra onde também. Mas venha, é o que peço...
- Eu não posso sair daqui, Irwin... É impossível
- Não é impossível... Você é uma pessoa incrível, tenho certeza que faria o que faz aqui em qualquer lugar do mundo...
- Não, Irw, meu lugar é aqui, não posso ir. Fique você aqui comigo. Seja o que for, resolveremos juntos...
Ele sorriu, se aproximou dela e acariciou seu rosto suavemente, com ternura.
- Eu nunca vou me esquecer de você, linda Cassandra... Jamais...
- Irwin, espere...
Ele retirou de seu pescoço um pequeno e delicado relicário e colocou em volta do dela.
- Um pedaço de mim para estar sempre com você.
- Obrigada, não precisava se preocupar, mas eu... Escute... Vamos conversar melhor...
Um barulho do lado de fora fez a expressão dele se tornar alerta novamente.
- Me perdoe por chegar assim na sua vida. Mais do que isso, me perdoe por ir embora dessa forma. Infelizmente, nada mais pode ser feito... É hora do adeus...
Os olhos dela se encheram de lágrimas
- Eu fiz alguma coisa errada?
- Não! Não, não... Nunca... Você é perfeita... Digamos que eu foi quem andou fazendo umas coisas erradas, tá bem? Fique em paz, fique bem...
As lágrimas escorreram pelo rosto dela. Ele tirou um lencinho vermelho do bolso e secou as lágrimas. Um perfeito cavalheiro.
- Adeus, Irw...
- Até breve, minha querida...
Ele abriu cuidadosamente a porta do trailer, olhando com atenção para todos os lados.
- Até breve? Quando eu te vejo então?
Ele sorriu, os olhos brilharam
- Nos teus sonhos...

terça-feira, junho 29, 2010

Quer dançar?

- Você não é uma pessoa comum, minha querida...
- Mas é claro que sou, Irw... O que eu tenho de especial, afinal?
Ele sorriu, e afastou com delicadeza os cabelos dela para trás da orelha...
- O seu mundo é o circo, não é?
- Sim, e como haveria de ser diferente?
- Não haveria, e aí está toda a beleza. Você vive num mundo mais belo, mais colorido e mais criativo do que essa realidade banal que vemos por aí afora. Eu diria que, a seu modo, você quase enxerga o mundo como eu.
- Pra mim sempre foi assim, sabe...
- Sei... Eu sei... Você simplesmente não foi corrompida. Você quebrou as regras deles, sabe? Você fez um pouco como eu, só que ao contrário. Hmmm... Explico: Enquanto você resolveu ficar, eu resolvi sair, vagar pelo mundo afora, buscando minhas próprias verdade, minhas próprias paixões, sabe? Você pra mim é inspiração pura, é diferente deles todos...
- Deles quem, Irw?
- Dos outros, minha querida. Dos outros...
- Na verdade eu também te acho bem diferente de todos os outros
- Acha, é? - ele sorri, os olhos brilhantes para ela - E é verdade. Eu sou mesmo, sempre fui. Mas a maioria das pessoas encara mal essa diferença. Me vê como um cara estranho, meio perdido, sei lá. Mas já me acostumei a essa estranheza. Faz parte do pacote, se é que você me entende...
- Eu entendo sim... Também sou meio estranha, também faço o que gosto, porque gosto, também vivo do que acredito, da minha paixão, da minha criatividade, do que eu sonho e faço virar realidade do meu jeito...
- Exatamente! Você define perfeitamente, é incrível... É o que eu mais valorizo... Você não é mais uma descrente... É por isso que me sinto tão bem aqui no seu circo, e com você... Parece que aqui eu não preciso me esconder, posso ser quem eu realmente sou.
- Mas pode mesmo, claro que pode.
- Bom, não completamente, mas digamos que é o mais próximo que posso chegar... E veja que eu já estava achando que seria inevitável. Ser soterrado, arrasado pelo frio.... Anda frio demais aí fora, e a tendência, imagine, é só piorar e piorar cada vez mais, e mais. Mas foi quando te encontrei que meu coração se aqueceu novamente de esperanças. Você me trouxe muita coisa sobre mim de volta, Cassandra... Eu estou tão feliz!! Tenho vontade de dançar. Quer dançar comigo? - ele disse, enquando estendia a mão e a convidava
- Mas onde está a música, Irwin? - ela se levantou segurando a mão dele
- Está dentro da sua imaginação... Como sempre...

E dançaram pelo picadeiro vazio, enquanto ela pensava no quanto também se sentia feliz. Talvez pela primeira vez em muitos e muitos anos.

segunda-feira, junho 28, 2010

"Meu convidado"

- Você não precisa pagar ingresso toda vez, Irwin. Já faz mais de um mês que você é meu melhor espectador.
- Eu insisto, minha querida. É como uma orquídea, sabe? O preço que se paga é barato diante de tanta beleza. Além do mais, o circo é seu sustento, não faz sentido que eu assista o espetáculo sem gastar nada. Você mesma me disse isso quando nos conhecemos, lembra? "Gosta de circo? Então paga!" - ele riu imitando os trejeitos faciais dela.
Ela riu de volta.

- Eu sei, eu sei... É verdade, eu disse mesmo isso. Mas quem insiste dessa vez sou eu. Hoje você é meu convidado.
- Está bem, incrivel Cassandra. É uma honra, portanto.

domingo, junho 27, 2010

Das orquídeas

- Cassandrita, quem é ele, cuentame!!? - perguntou a ajudante do mágico naquele portunhol terrível de sempre
- Eu gostaria de saber, de verdade!
- Já es la tercera apresentacion que ele compra lo camarote!
- Eu sei, eu sei... Mas que posso fazer? Ele não se apresentou...
- Bueno, se apresentó por la carta, no es verdad? I-R-Uin, né?
- Irwin, Juanita...
- Que flores, hã? Belisimas
- Diferentes, né? Dizem que são difíceis de se encontrar...

- Devem ser caras!
- Não se iluda, Juanita, deve ser um caprichoso bancado pelo papai rico, com certeza...
- Como se llaman mismo esas flores?

Quem respondeu a pergunta foi uma voz masculina atrás delas:


- Se chamam orquídeas. Não são caras, na verdade. Eu diria que é um preço justo para tanta beleza.


Juanita ficou branca de susto na presença do rapaz. Pediu licença a Cassandra e saiu correndo para seu trailer, dando risadinhas como uma adolescente. Cassandra o encarou com simplicidade.


- Obrigada, são mesmo muito bonitas.


Ele sorriu.


- Foi mais uma forma de se desculpar pelo susto aquele outro dia. E pelos arranhões no braço.


Ela se sentiu envergonhada pelo olhar dele para ela. Baixou os olhos para os braços realmente arranhados.


- Está tudo bem. Isso acontece...
- Bom, gostaria de me apresentar agora mais formalmente... Meu nome é Irwin - disse enquanto tirava o chapéu cordialmente
- É, eu vi no seu bilhete... Meu nome é Cassandra...

- A incrível Cassandra, não é? - ele sorriu, passando os olhos pelo cartaz do circo colado na porta do trailer dela - Bom, gostaria de saber se a incrível Cassandra me daria a honra de passear comigo. Sei lá, tomar um sorvete, está tão quente hoje, não é?

- Er... Eu... Eu não costumo sair muito daqui do circo...

- Quem disse que nós precisamos sair? - ele disse, feliz, apontando o carrinho de sorvetes.

sábado, junho 26, 2010

Aplausos especiais

Foi exatamente quando ela terminou a série de saltos mortais na corda que seus olhares se cruzaram novamente. Era ele, o rapaz da noite anterior. Estava sentado na primeira fila, o lugar mais caro do circo, e a observava com insistência. A arquibancada estava lotada, e quando seu número terminou, ele aplaudiu de pé. Ela agradeceu, graciosa. Não era sempre que a platéia era receptiva daquela forma. Sentiu-se feliz por não ter errado nada, e elogiada pela reverência do rapaz, que a cumprimentou com um meneio de cabeça. Ela sorriu.

sexta-feira, junho 25, 2010

Encontro no Picadeiro

Clap clap clap clap clap clap clap

Os aplausos ecoaram alto por todo o picadeiro vazio. Com o susto, Cassandra caiu da corda bamba onde se equilibrava. Amorteceu a queda numa cambalhota, rolando pelo chão de terra, ágil como uma felina. Logo estava de pé procurando de onde vinham aquelas palmas.

Encontrou num canto um jovem rapaz franzino, cabelos e olhos bem pretos, que a observava sentado em um dos bancos da platéia.

Ele também se assustou com a queda dela, saltou a proteção de madeira que separava a platéia do picadeiro e se aproximou rapidamente.


- Você está bem? Se machucou?

Ela se afastou alguns passos, limpando os braços sujos de terra
- Quem é você? O circo está fechado agora! - ela disse, arredia
- Eu... Eu... Eu sei, desculpe... Simplesmente não pude evitar olhar...
- Vá embora! Saia agora! Não vê que me assustou?
- Me desculpe, não foi minha intenção, eu...


Sem saber o que dizer, ele virou de costas e caminhou alguns passos. Antes de sair pareceu criar coragem e se virou mais uma vez:

- Você é uma excelente acrobata. Das melhores que eu já vi. De verdade. E olha que já vi muitas!

- Por favor... Será que eu terei que chamar alguém pra arrancá-lo daqui?
- Eu... Eu estou indo... Desculpe... Descanse um pouco, você está aí há horas...
- Há quanto tempo você está me olhando?
- Eu não sei... Uma hora, duas talvez... Você nunca para?

- Chega, garoto! Se gosta de circo, pague o ingresso!
Ele sorriu
- Eu vou pagar. Pode ter certeza. Adeus, senhorita...


Ela ficou observando pra ter certeza de que ele sairia por um dos cantos do picadeiro.

quinta-feira, junho 24, 2010

O fim e o começo

E foi assim, como num passe de mágica, que a ilusão da menina virou realidade. Aos 16 anos, por mérito e direito, a inigualável Cassandra, como única herdeira, tornou-se a proprietária do Gran Circo Gonzales.

quarta-feira, junho 23, 2010

Coração adúltero

Quando Mademoiselle Gabrielle, a fantástica contorcionista, descobriu que o hábil Carlos andava ensaiando novos números com a adorável Juanita, a ajudante do mágico, e contratou o experiente atirador de facas Jaime, o insuperável, para acidentalmente errar seu alvo e acertar o coração adúltero do dono do circo.

terça-feira, junho 22, 2010

De quando a menina perdeu o juízo

Assim, perdida em suas brincadeiras e delírios, a pobre menina foi perdendo o juízo. Pelo menos era o que dizia seu pai "perdeu lo juízo, la pobrecita". Sua imaginação foi tomada por tudo o que sonhava - magias, truques, brilhos, números incríveis, aplausos do respeitável público, desafios, amores e disparates inacreditáveis. Foi assim que acudiu-lhe a mais estranha idéia , que jamais ocorrera a outra louca nesse mundo. Pareceu-lhe conveniente criar seu próprio mundo, seu próprio circo.* E assim foi, pelo menos e a princípio, somente dentro de sua mente.
* referências a Dom Quixote de La Mancha - Miguel de Cervantes

segunda-feira, junho 21, 2010

A inigualável Cassandra!

Apesar do evidente cansaço dos treinos, enquanto se equilibrava no alto de sua corda, Cassandra transformava seu mundo habitualmente cinza em colorido. Ao se apresentar, imaginava-se bem maquiada e vestida, com os cabelos presos ao alto num coque banana - e, inexplicavelmente, sem as orelhas de abano. A lona velha e remendada transformava-se em um picadeiro luxuoso. O pêlo de Sancho brilhava reluzante, e a platéia geralmente sonolenta e entediada a aplaudia com entusiasmo. Havia música, brilho, luzes, cheiro de pipoca e todos a admiravam. Os cartazes anunciavam o show da "inigualável Cassandra". O circo era seu mundo mágico, e ela adorava cada vez mais o que fazia.

domingo, junho 20, 2010

"Andále, andále"

A altura da corda subia a cada dia, assim com aumentavam também as horas de ensaio de Cassandra, que não encontrava mais tempo para brincadeiras de criança. Um forte " Andale, andale!!" Acompanhado de palmas vigorosas era o que o pai de Cassandra enérgicamente dizia nos poucos momentos em que estava presente, incentivando-a a fazer o trajeto na corda cada vez mais rápido.

sábado, junho 19, 2010

Sancho, o chimpanzé


Enquanto aguardava os intensos ensaios de seu pai com a madrasta, que invariavelmente aconteciam dentro do trailer do dono do circo e a portas fechadas - para que se mantivesse o sigilo dos números - conforme explicava Juan, Cassandra treinava o equilíbrio na corda bamba, incansavelmente. Era sempre observada de perto por Sancho*, seu fiel amigo, um chimpanzé adulto de olhos expressivos que costumava vestir roupas de gente e um chapéu.

sexta-feira, junho 18, 2010

Gabrielle, a contorcionista

Se parecia impossível encontrar substituta para a mulher pássaro artista, para o papel de esposa Carlos não pareceu ter dificuldades na troca. Poucos dias após o fatal incidente, o lugar vago no trailer do pai de Cassandra já era ocupado por Mademoiselle Gabrielle, a fantástica contorcionista, que fazia diariamente demonstrações de suas fenomenais habilidades corpóreas em apresentações exclusivas para o acrobata.

quinta-feira, junho 17, 2010

O destino de Cassandra


Após o inesperado acidente o pai de Cassandra, Carlos Gonzales, um hábil acrobata e não assim tão hábil trambiqueiro, decidiu que finalmente era o momento de sua filha única ser iniciada no estudo das artes do circo. Era necessário, quase urgente, encontrar substituta à altura para a falecida mulher pássaro, já que essa era a principal atração da desfalcada trupe familiar cujos rendimentos conseguiam mensalmente sustentar todo o pequeno circo Gonzales e acalmar a fúria dos dezenas de agiotas para quem Carlos devia.

quarta-feira, junho 16, 2010

A morte da Mulher Pássaro


Num lugar do interior de São Paulo, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia uma menina.* Chamava-se Cassandra Napolina Gonzales. Era franzina, delicada, tinha orelhas de abano, e seus longos cabelos negros desciam até a cintura. Estava prestes a completar 6 anos quando se deu a tragédia: o último vôo fatal de sua mãe, Alana Gonzales, conhecida no mundo circense como "a inacreditável mulher pássaro".

*referência à frase inicial de Dom Quixote de La Mancha - Miguel de Cervantes

quinta-feira, maio 06, 2010

Ladainha



As vozes das beatas ecoavam na catedral... Ave Maria, cheia de graça... Eu caminhava devagar na direção do altar, olhando atenta a arquitetura por vezes sombria da igreja... O senhor é convosco... Meu sapato fazia mais barulho do que deveria... Passos lentos... Bendita sois vós entre as mulheres... Ladainha, terços nas mãos... Por mais surreal que pudesse parecer, elas entoavam aquele oração com lenços na cabeça, ajoelhadas, olhares na direção da cruz... Bendito é o fruto de vosso ventre... Qual a razão daquele ritual? Qual o motivo de tanta devoção? Qual o sentido de repetir frases e mais frases sem pensar? Sentei-me alguns bancos atrás delas... Pecadora... Jesus... Recostei-me no banco de madeira, olhando... Eram quase seis da tarde... Que eu fazia ali? Algo me atraiu... Curiosidade... Sempre quis acreditar em uma religião... Sempre... Santa Maria mãe de Deus... Mas não conseguia crer em nada, não conseguia encontrar razão para crer em nada... Foi rápido... Achei que tinha sido uma impressão... É sempre assim na primeira vez... A idéia inicial é negar... Voltei-me para o alto e lá estava... Nas sombras... Me olhando... Rogai por nós... Pisquei os olhos e já havia desaparecido... Seja lá o que for aquilo, me viu... E sabe que o vi também... Pecadores... Levantei-me, olhei para trás, para os lados, buscando... Onde ele estaria? Me olhando, certamente... Sentiu minha falta de fé... Sentiu que não represento risco... Caminhei mais rápido... Precisava sair dali... O homem negro que entrava no santuário olhou-me feio... Maldito sapato barulhento... Denunciava meus passos, minha direção, minha fuga covarde... Agora e na hora de nossa morte... Voltei-me para o altar antes de sair... Fiz o sinal da cruz, baixei os olhos diante daquilo que para mim nada significava... A noite me aguardava.... Onde ele estava? Desci as escadas da igreja correndo... Me seguiria até aqui? Não, não hoje, não dessa vez... Eu volto... Amém...

terça-feira, abril 13, 2010

Melissa e Kapeller 11



- Quando te vi pela primeira vez, daquele parapeito ali - e ele apontava um lugar indefinido da escuridão da janela do meu quarto - tive certeza de que seria você.
- Não, não teve.
- Você acha mesmo que eu te diria isso?
- Acho que não, por isso estou duvidando.
Ele sorria, os dedos passando suavemente pelo meu rosto. Estávamos deitados em cima do tapete redondo do chão, diante da janela, de onde enxergávamos o céu sem estrelas da noite de São Paulo. Os rostos próximos, mas sem nos encararmos.
- Não diria mesmo. Não para aquela menina. Ela não ainda estava preparada para saber.
- Aquela menina ainda está aqui, Chris.
- Será?
- Coberta por uma armadura de aço, mas está.
- Não consigo reconhecê-la.
- Assim como eu não consigo mais reconhecer você.
Nos olhamos por alguns segundos, mas foi impossível segurar o mal estar. Voltei a olhar pro céu. Ele quebrou o silêncio novamente:
- Não era game over?
- Digamos que você tinha um "continue" ainda.
Ele riu alto, como eu nunca antes o havia visto fazer.
- Isso deve querer dizer que eu jogo bem...
- Ou tem as senhas certas...
- Que sorte a minha
- Que sorte a minha
Sorrimos, e dessa vez os olhares conseguiram se encarar por mais tempo. Muito mais tempo.

"De tanto te esperar
Eu quero te contar
Das chuvas que apanhei
Das noites que varei
No escuro a te buscar
Eu quero te mostrar
As marcas que ganhei
Nas lutas contra o rei
Nas discussões com Deus
E agora que cheguei
Eu quero a recompensa
Eu quero a prenda imensa
Dos carinhos teus..."

(Chico Buarque - Sem fantasia)

segunda-feira, abril 12, 2010

Melissa e Kapeller - 10



(Para ler ao som de Pyramid Song - Radiohead)

Quando entrei ele estava sentado num canto, murmurando algumas palavras que reconheci na mesma hora. Aquela já havia sido minha música favorita. Não era mais. Ele sorriu e se virou, sem parar de cantar...

"...black-eyed angels swimming with me...
...and we all went to heaven in a little row boat..."

- Eu nunca tinha percebido, Mel
- O que?
- O quanto ela fala de nós
- Você nunca foi muito dessas... Sutilezas... Ta tudo bem...
- Não! Não... Não faça isso...

Ele se levantou, veio na minha direção e tampou minha boca com os dedos, suavemente.

- Psiuu... Não faça mais isso, minha querida... Não diga mais que tudo bem... Você não precisa... Eu quero ser diferente, quero ser quem você espera.

Senti seus dedos escorregando pelo meu rosto até se afastarem de mim.

- Eu não espero uma cena montada. Nem essa trilha sonora... Nada disso faz sentido pra mim... Nada...
- Eu não montei nada, essa pra mim é a sua música... Eu precisava demais de você aqui, queria demais te sentir aqui... Mas, por favor, se não é isso que você quer... Que eu preciso fazer, Mel?
- Eu não sei, Chris... Acho que nada. Não mais...
- Mas você veio até aqui... Por que?

Como explicar o amor? É possível? É necessário? Mudaria alguma coisa para ele? Mudaria, principalmente, alguma coisa para mim? Como explicar a dor que ele me causou em todos esses anos de frieza, de solidão, de vazios? Como explicar cada palavra que me doía como uma punhalada? Cada rejeição?

Como explicar que eu ainda estivesse ali mesmo depois de tudo aquilo? Como explicar que eu ainda atendia aos chamados dele? Duas palavras dele mudavam anos de resoluções minhas? Eu me odiava por estar ali, eu me odiava, mas ali eu estava.

Ouvindo a música que eu me recusara a ouvir por anos, sentindo aquelas borboletas no estômago. As borboletas que eu esmagava uma a uma, com ódio, com desprezo. Mas que renasciam como mágica, com as magias que só ele sabia fazer. Como dizer tanta coisa pra quem significa tanto? Não. O silêncio falaria por mim naquele momento. Só ele, e Thom Yorke.

"...there was nothing to fear and nothing to doubt
there was nothing to fear and nothing to doubt
there was nothing to fear and nothing to doubt..."