quinta-feira, julho 16, 2009

Melissa e Kapeller - 2


Curitiba, Janeiro - 1999

A fuligem curitibana se misturava aos ultimos raios de sol, diminuindo a força do astro, enquanto uma voz melodiosa e cansada misturava-se aos sons da tarde no velho edíficio apinhado de gente que Christopher usava como refúgio.

Como um mantra tropical, os versos ecoavam várias vezes em sua mente, fazendo-o relembrar da noite anterior, quando Melissa quase cometera o erro de contestar sua a autoridade como criador na frente de outros kogayon.

Obviamente Kapeller sabia que a Ordo era bem tolerante no que tangia ao comportamento dos aprendizes com relação aos seus preceptores, mas não era a percepção dos magníficos dragões que preocupava o ancião.

A discrição não era necessariamente uma característica de sua espécie e Melissa tornara-se uma mekhet graças a seu desejo de torná-la em algo mais que uma aspirante a estudante do oculto. Ele lhe farejara a fera antes mesmo de seu abraço, mas sua passionalidade a marginalizaria perante sua Família e Christopher detestaria perdê-la por um capricho tão medíocre. Ele, aliás, detestaria perdê-la de qualquer forma.

Desceu a escadaria desgastada pelo tempo e cumprimentou o porteiro. Caminhou pelas ruas apinhadas de gente saída do trabalho e presa à roda das coisas, desesperançosa de qualquer mudança. Christopher olhava para o povo com a ínfima intenção de encontrar um ponto de luz, mas tudo que via era gado em uma cidade desestruturada.

Christopher lembrou de suas próprias ambições e do quanto elas podiam afetar o mundo a sua volta e caminhou rumo ao galpão do velho moinho, onde sabia que sua pupila o aguardava.
Encontrou-a sentada na trave do telhado. Abaixo dela, alguns policiais fotografavam um corpo ainda quente.

-Ele se matou - sussurou Melissa com pequenas lágrimas rubras a manchar-lhe a face alva - deixou uma carta confessando o assassinato da esposa, cujo o conteúdo já anexei ao estudo. Agora preciso catalogar a impressão de cada um desses homens, aguardar que o governo tome para si o pouco dinheiro que ele conseguiu juntar até que a energia residual de sua...

- Chega! -interrompeu Kapeller limpando o rosto de Mellissa e sinalizando para que saíssem daquele lugar- Acabou...

A garota quase se pegou contestando seu mestre mais uma vez e o teria feito se a ordem de abandonar aquela enfadonha e lúgubre tarefa não a deixasse tão aliviada. Passaram incógnitos pelos colegas do defunto e Christopher prosseguiu enquanto caminhavam no frio daquele começo de noite:

-Você pôde entender que a teoria de que toda ação tem um reação não é validada quando tratamos do rebanho, Melissa. Nós temos...responsabilidades para com nossas existências e nossas ações desencadeiam uma série de eventos que podem nos levar ao sucesso ou à destruição. Essa noite, o dragão que você perseguia, ainda que talvez por mera obrigação, mudou de rumo e direção e sua cauda alcançará harmônicas desnecessárias para seu aprendizado. Eu vim para te libertar desse laço, minha jovem suplicante-do-sangue. Você ficará por aqui, por enquanto, aprendendo com outros mestres sobre a transcendência de nossa condição...

"...Ainda é cedo amor, mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Presta atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
E em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavastes com teus pés..."

(Cartola - O mundo é um Moinho)

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