sexta-feira, julho 17, 2009

Melissa e Kapeller 8


Quando desci as escadas, meio esbaforida, atrasada como sempre, ele já estava lá. A expressão no rosto dele era de um sorriso, mas acho que mais ninguém além de mim poderia identificar qualquer sentimento ali. Outras pessoas jamais reconheceriam aquele ínfimo movimento de maxilar como expressão de felicidade, mas eu sabia o que era, e o quanto era raro flagrá-lo daquela forma.

Parei diante dele. Meu vestido era vinho e tinha mangas compridas. Usava meia calça preta grossa, com sapatos pretos de boneca. Uma flor de tecido lilás enfeitava meus cabelos e um cachecol muito peludo se enroscava em meu pescoço. Puro charme, já que obviamente já fazia pelo menos uns 12 anos que eu não sentia mais frio.
Que diabos ele queria com um encontro a sós, assim? Um encontro mesmo, foi essa a palavra que ele usou no telefone. Encontro. As mãos dele estavam escondidas atrás do corpo, e por um segundo eu tive a ilusão de que ele carregava um buquê de flores, mas, que bobagem, era tão óbvio que Chris jamais faria aquilo. Quer dizer, talvez até fizesse, mas de um jeito sarcástico, por pura ironia, para fazer uma explanação sobre a fragilidade das plantas ou algo do gênero.

Permaneci séria, com aqueles cílios posiços grandes e a maquiagem pesada nos olhos fazendo com que minha expressão ficasse ainda mais carregada do que de costume. Era impossível explicar o sem número de sentimentos que eu revivia ali diante daquele homem. Eles se enfileiravam diante de mim, tantas lágrimas, tantas páginas do meu diário rasgadas, a solidão apavorante quando ele se afastava, o desespero ao ouvir as músicas mais tristes, a escrita compulsiva das poesias mais desesperadas, as tolas e vãs tentativas de fazer com que ele me entendesse, que enxergasse os fatos de forma diferente.

Os anos separados causaram em nós efeitos opostos. Enquanto eu endureci, passei a ver a vida de uma forma mais prática e objetiva, ele parecia ter amolecido, parecia estar mais frágil e sensível. Seria irônico, se não fosse triste o fato de que corríamos em direções opostas sempre. Talvez nunca nos encontrássemos, simplesmente porque era assim que tinha que ser.

- Você está linda, ele disse dando dois passos na minha direção.
- Você é ridículo, eu disse, sem mover um músculo.

Ele riu, como se já esperasse um comentário ácido da minha parte. Definitivamente eu não via nada ali que pudesse ser divertido e exatamente por isso aquela situação foi me deixando impaciente, irritada.

- Que você quer de mim, Kapeller?

Chris então se aproximou, trazendo as mãos pra frente. Não eram flores o que ele trazia, mas sim um livro, um grande livro com a capa de couro preto que eu conhecia muito bem. Ele o estendeu pra mim. Eu engoli em seco. A expressão dele era de vitória.

- Acho que já é hora de você ter acesso a ele. Vai te ajudar muito nesse momento da pesquisa, eu tenho certeza.

Estendi a mão para pegar um de seus diários particulares, onde Christopher registrava há anos os passos de seu caminho de pesquisa, suas fontes, suas observações, tudo, absolutamente tudo o que lhe chamava a atenção e mobilizava, suas dificuldades, seus erros, acertos.

Ele então recuou com o livro, visivelmente desapontado.

- Ah, minha querida, era tão óbvio... Que pena, que pena...

Não entendi nada, absolutamente nada. Foi como se o chão se abrisse debaixo de mim. Estava tão cansada desses jogos, desses testes, dessas provas, estava tão cansada dele! Baixei as mãos, nervosa, a fúria se refletia na minha expressão corporal, facial, em tudo. A voz dele também estava alterada, os olhos arregalados, o tom de voz mais alto.

- Seu ego cresceu demais... É preciso mais humildade pra alcançar o conhecimento. Você não poderia aceitar o diário, tinha que ter recusado! Recusado! Dito que não estava pronta ainda!

- Isso está me exaurindo. Me esgotando, me destruindo.

- Mas é o que eu quero, minha querida! Eu quero que você se destrua, pra se reconstruir de novo, pronta, perfeita, inteira novamente!

- Pra mim chega... Que se dane. Seu conhecimento, seu diário idiota... Que se dane VOCÊ...Eu não sou perfeita o suficiente... Nunca vou ser!
Virei as costas e comecei a trilhar o caminho de volta. No alto da escada, voltei-me pra ele de novo. Levei um susto, pois ele estava a um palmo de mim, sério, me encarando com aqueles olhos verdes imensos, que me invadiam, mas não me entorpeciam mais como antes.

- Esse é exatamente o ponto... Você é perfeita o suficiente. O suficiente pra mim.

Não sabia o que dizer. Simplesmente não haviam palavras. Não havia o que fazer também. Definitivamente estávamos em mundos diferentes agora. Toda aquela doçura já não encontrava mais espaço em mim. Meu coração estava endurecido, rígido, simplesmente não respondia mais. Nem a ele, nem a ninguém.

- Da próxima vez tentarei ser mais-que-perfeita, então...

Ele balançou a cabeça, concordando. O arremedo de sorriso já não existia mais.

- Uma pena, Mel... Que pena...

"...Ela já não gosta mais de mim
Mas eu gosto dela mesmo assim
Que pena, que pena
Ela já não é mais a minha pequena
Que pena, que pena...
Pois não é fácil recuperar
Um grande amor perdido
Pois ela era uma rosa
As outras eram manjericão
Ela era uma rosa
Que mandava no meu coração

Que pena, que pena
Mas eu não vou chorar
Eu vou é cantar
Pois a vida continua
E eu não ficar sozinho
No meio da rua, no meio da rua
Esperando que alguém me dê a mão..."

(Que pena - Jorge Ben Jor)

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