sexta-feira, novembro 14, 2008

Something

Era uma tarde daquelas bem comuns até que o telefone tocou. Faz tanto tempo. Foi num tempo
em que não haviam ainda identificadores de chamada. Também não haviam telefones sem fio. Já existiam os com teclado, mas o meu era daqueles de discar mesmo, cor de creme, bem clássico do fim dos anos 80, começo dos 90. Sempre sobrava pra mim atender o bendito. Sempre e sempre. "É sempre pra você mesmo", dizia minha mãe, o que era mentira. Era sempre pra ela, mas nem adiantava contrariar. Ninguém me telefonava nessa época. Ninguém mesmo. Quando acontecia, eu em geral não gostava. Não tinha muito o que dizer, na verdade. Era fim de janeiro, talvez começo de fevereiro, quando eu atendi aquele telefone, com uma voz de quem não falava há algumas horas:

- Alô...
- Oi, moleca
- ...

Sim, eu sabia quem era. Porque os meninos que foram as grandes paixões da minha vida sempre me arrumavam uns apelidinhos carinhosos e exclusivos. E esse era o dele. Eu não tinha apelidos pra ele na época, mas tenho um hoje: pedestal-mor. Ele também era o único menino que poderia me telefonar, apesar de ser a primeira vez que o fazia. E isso explica o silêncio, o meu susto, quase um pânico, que ele logo contestou perguntando mais alto:

- Alô, A...?
- Oi...
- Oi, sou eu, pedestal-mor, tudo bem?
- ... Eu tô bem... E você?
- Bem... Escuta, será que você pode me ajudar com aquela sua revistinha dos Beatles?
- ...

O silêncio apareceu dessa vez porque eu precisaria resolver um grave problema: como conseguir fazer com que as minhas pernas parassem de tremer para então me levantar, ir até o meu quarto, abrir a gaveta do armário e pegar uma daquelas revistinhas bem fuleirinhas que se comprava em banca de jornal com letras de música pra violão. É, minha gente, em 90 e pouco não existia o Deus Google e pra achar uma letra de música internacional você precisava manjar muito de inglês pra tirá-la de ouvido, comprar uma dessas revistinhas (procurando bem, pra achar a música certa) ou ainda ter um amigo que tivesse a sorte de ter a letra desejada. O caso dele era o terceiro, e pra minha sorte ou azar, a amiga era eu. Depois de um tempo o silêncio começou a incomodá-lo de novo:

- Alô?
- Eu tô aqui...
- E então, você me ajuda?
- Vou lá pegar, espera aí...
- Ok...

Ele nem sequer poderia imaginar que comprei aquela revistinha por causa dele. Só para impressioná-lo, só para que ele achasse que dividíamos um interesse em comum. Ela foi estrategicamente comprada e estrategicamente colocada na minha mala de viagem. Assim, meio displiscentemente, em meio a revistas "Carícia", que eu adorava, e algumas "Capricho"... Era dos Beatles, mas eu também tinha uma do Legião Urbana, outra do Raul Seixas e uma de músicas internacionais variadas. Ele caiu na minha isca. Na praia, quando nos encontramos, deixei a tal revistinha meio a vista e descobri que ele reparava, sim, nas minhas coisas. Rendeu muito papo essa revista, e agora tinah rendido tambem um telefonema. Benditos centavos que gastei naquela porcaria feita em papel vagabundo e que agora eu trazia pra sala, pro lado do telefone, como um tesouro.

- Qual você quer?
- Na verdade queria todas, mas por agora serve Something.
- Eu xeroco pra você.
- Sério?
- uhum...
- Quando você vem?
- Fim de semana, capaz...
- Passo lá então pra pegar
- uhum...
- Mas me fala a Something...

"Sâmfim". Era assim que ele falava. E eu ditei "Sâmfim" pra ele, com meu inglês ridículo. Ele anotou, com o inglês ridículo dele. Eram mais fonemas do que palavras, imagino. Nunca vi essa anotação, assim como ele nunca pegou o meu xerox, que eu com tanto carinho levei na bolsa quando estive, mais uma vez, na casa dos meus primos que moravam perto dele. Tempos depois, num ataque de raiva e ciúmes de uma namoradinha que ele tinha arranjado, rasguei os xerox todos. Não sei o que aconteceu com a revista. Provavelmente deve ter ido pro lixo também. Nem eu nem ele sabíamos direito o que queria dizer essa letra linda, mas ela tinha bastante a ver com a gente. Com o amor, a atração, o carinho que eu sentia por ele, e que hoje sei que ele sentia também, mas não demonstrava. Ou demonstrava do seu jeito menino, que eu não conseguia, não queria, não sabia captar. Não importa. O que eu sentia era algo que eu não explicava. Something... E eu não estaria aqui hoje escrevendo isso tudo sem ele, e isso é tudo o que interessa.

Something
(George Harrison - The Beatles)

"...Something in the way she moves
Attracts me like no other lover
Something in the way she woos me

I don't want to leave her now
You know I believe and how

Somewhere in her smile she knows
That I don't need no other lover
Something in her style that shows me

I don't want to leave her now
You know I believe and how

You're asking me will my love grow
I don't know, I don't know
You stick around now it may show
I don't know, I don't know

Something in the way she knows
And all I have to do is think of her
Something in the things she shows me

I don't want to leave her now
You know I believe and how..."

Um comentário:

Anônimo disse...

Internet é uma coisa engraçada mesmo... você citou duas músicas muito importantes pra mim. 'Something' é a minha favorita dos Beatles e 'Dom Quixote' é uma das minhas favoritas do EngHaw e cá estou eu, comentando no blog de uma pessoa completamente desconhecida.