segunda-feira, novembro 12, 2007

Ártico

Agora toda vez que eu resolvo sair de casa é assim. Frio. Garoa. Ok, estamos em São Paulo, mas é primavera, oras... Caminho pela rua achando que deveria ter colocado um casaco mais grosso. Frio. Passo pela oficina mecânica, olho para a gaiola onde sempre encontro um canário. Gaiola vazia. O pássaro não está. Estaria escondido? Será que morreu? Fugiu? Prefiro nem pensar. Acelero o passo. Frio. Um homem fuça em sacolas cheias de lixo enquanto as pessoas cuidam de suas vidas, fazem compras, caminham para o trabalho ou para o banco, como eu. Triste de ver. Ele se mescla com a rua, com a cidade, é quase invisível, parece que ninguém o enxerga ali. Só eu. Frio. Na porta da empresa de segurança, os carros-forte vão saindo, um por um. Passo por eles, ando por ali como se fosse normal caminhar entre a mira de dois fuzis. Não duvido que eles atirassem, se fosse preciso, sem se importar em quem estivesse na frente. Poderia ser eu. Frio. Chego no banco, lotado, pessoas mal humoradas, assim, logo cedo, a porta me bloqueia, o vigia me encara. Que será que ele pensa enquanto me manda , com um gesto, do outro lado do vidro, abrir a mochila? Faz cara de poucos amigos quando vê a bolsa aberta com um celular, um guarda chuva e uma mamadeira de nenê. Frio. Pago as contas com a máquina. Dígitos, senhas, valores, códigos, tela gelada, voz metálica, recibo rápido. Pronto. Cidadã exemplar. Frio. Saio do banco e o vento dá uma piorada. Aqueço os braços, o farol está aberto pra mim, mas o motoboy está com mais pressa. Desvio dele, e ele de mim. Ainda bem que não escolhemos o mesmo lado. Ele me observa passar, olhos sérios atrás da viseira do capacete preto. Frio. Pixações antigas cobrem as paredes das casas. O que eles queriam gritar quando escreveram aquilo? Por que será que elas não me dizem nada? Um porteiro cochila atrás da grade exagerada da guarita. Estará ele protegendo ou sendo protegido? A senhora gorda, moradora de rua, que vive no muro encostado à fábrica, está com fones de ouvido. Alheia, escuta música, balança a cabeça, no ritmo. Procuro um rádio que não encontro. Será que a música está só dentro da cabeça dela? Frio. Volto pra casa sem ter dito nada, meio sem palavras, só com uma sensação ruim de quem precisa falar tanta, tanta coisa, de quem precisa quase berrar por ajuda. Pra não morrer congelada.

"Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle

Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm para quê?
As crianças correm para onde?
Transito entre dois lados de um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo, me mostro
Eu canto para quem?

Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço?
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle..."

(Adriana Calcanhoto - Esquadros)

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