terça-feira, setembro 23, 2008

Pedacinhos

Deslumbramento que é essa história de cavar memórias. Um negócio, mesmo. Quanto mais a gente cava, mais fósseis a gente encontra. Acho que cavoquei tanto ontem, que sonhei com a casa da tia Dorotéia, aquela mais antiga, colada à escola. Quantas, quantas, quantas lembranças. Daqueles primeiros amores com gosto de bala chiclete e guaraná de garrafa de vidro. Quantas tardes correndo, chutando bola, acertando na cesta e pedalando na bicicleta atrás dos meus primos queridos. Tardes mergulhando na piscina de plástico e rolando no chão, e riscando com giz enquanto os meninos falavam de coisas que a gente ainda não entendia. Noites quentes fugindo quando no beijo-abraço-aperto de mão a gente caía pra beijar um primo, mesmo morrendo de vontade de beijar, só pra ver que gosto que tinha. E quantas e quantas vezes a gente sonhou juntos, repetindo e repetindo "que é que você quer do mundo?". E quantas vezes eu chorei porque não corria tão rápido e meu primo mais querido, aquele que eu vou amar sempre e que sempre me escolhia pra dar passeio no bosque de mãos dadas, passava a mão no meu cabelo chanelzinho, igualzinho ao dele, e me dizia que ia brincar comigo, só comigo. Brincadeira bobinha, sem maldade alguma. Que saudades, favorito, do seu cabelinho igual ao meu. Saudades também daquela época em que a gente ia pra Caraguá no começo do ano brincar de nadar no rio perto das pedras e de boiar em câmara de pneu. E lavar louça depois do jantar virava programão, porque era a hora de ver "os meninos". Alguém pegava um violãozinho velho desafinado e tocava Legião Urbana e a gente ria, e cantava disputando quem conhecia mais letras. E o pedestal-mor passava os dedos pelo meu cabelo embaraçado até tirar cada nozinho, e me olhava com aquela carinha corada de sol, um cheiro de maresia misturado com Brut, dizendo que me amava "pra sempre", e eu corria escrever versinhos na agenda. Tonta. Pra sempre sempre acaba, né? Mas nada vai conseguir mudar o que ficou não... Andava de carro naquelas ruas de Guarulhos procurando um husky siberiano. Às vezes dava sorte. E toca ir todo mundo tomar sorvete de limão pra depois levar bronca da vó, que quando ficava brava sempre ia chamar um e errava o nome, e a gente ria, e ela acabava rindo também. E o menino magrinho que tinha os olhos azuis enormes e uma irmã com nome de princesa fazia o pedestal ficar morrendo de ciumes porque vinha me beijar na testa e dizer naquela agitação pré-adolescente que o gol que marcou era pra mim. E sorria, naquele sorriso raio de sol, e eu corria escrever de novo na agenda um final feliz pra gente. E o pedestal, sempre ele, me ajudava a passar nas fases mais difíceis do vídeo game. E ele nem sabia que eu detestava aquele jogo, e só jogava pra ele me ensinar. Vieram tantas lembranças misturadas agora, estranho que no sonho que eu tive, no lugar da quadra da escola tinha um rio. E tinha um menino também, mais alto, sem camisa, e eu era apaixonada por ele, mas não era nenhuma dessas paixõezinhas, era um desconhecido. Mas cantarolava "Hold me tight", igualzinho ao pedestal. Eu consigo lembrar como se fosse hoje. A gente naquele quarto mal iluminado, porque a persiana era amarela, porque o dia não era dos mais bonitos, porque a gente não queria mesmo que o sol entrasse ali. Nós dois no andar de cima, no quarto, e todo o resto do mundo lá embaixo. Porque só a gente gostava de ouvir os discos, e era lá que a vitrolinha ficava. Consigo descrever a roupa toda que ele vestia. A camiseta cinza, com uma estampa estranha, e gola virada, a bermuda comprida, os chinelos Rider, aquele bonezinho vinho de sempre, virado pra trás. Um olhar expressivo, de quem divide uma descoberta importante, aquele jeito que ele só tinha quando ficava sozinho comigo. O tom de voz carinhoso, doce, o sorriso secreto, igual ao da música, aquele que ele só usava comigo. Amor, muito amor mesmo eu sentia por ele. O primeiro que eu amei. E eu que nem sabia que diabos ele queria dizer com aqueles versinhos em inglês cantados todos errados. Hoje eu sei, será que ele desconfiava?

"It feels alright now
Hold me tight
Tell me I'm the only one
And then I might
Never be the lonely one

So hold me tight
tonight, tonight
it's you,
you, you ,you...

Hold me tight
Let me go on loving you
Tonight, tonight
Making love to only you

So hold me tight
tonight, tonight
it's you,
you, you ,you...

Don't know what it means to hold you tight
Being here alone tonight with you

It feels alright now
Hold me tight
Tell me I'm the only one
And then I might
Never be the lonely one..."

(Hold Me Tight - The Beatles)

Um comentário:

Blue disse...

Sabe, te lendo agora, eu percebi que nunca tive isso, nunca tive primo menino, só uma prima, mimada e chata...

As lembranças que tenho é sempre eu brincando sozinha, quando muito, brincando com a minha irmã, mas isso nem acontecia muito, pq ela é mais velha, nem tanto mais velha, mas a gente não se misturava muito, eramos e somos ainda,muito diferentes...

Acho que eu nasci mesmo pra ser um pouco sozinha... Ai ai,me dá um aperto no coração!

;*