terça-feira, junho 24, 2008

As Horas

Entraram aqui nesse blog buscando por "As Horas"... Quanto bom gosto, leitor! Satisfaço seu desejo... Esse é um dos meus livros favoritos... É bom demais... Enjoy...

"Ela chega para ajudar Richard a se aprontar para a festa, mas ele não responde às batidas na porta. Bate de novo, mais forte, depois rapidamente, com nervosismo, destranca-a com sua própria chave.
O apartamento está inundado de luz. Da soleira, Clarissa sufoca uma exclamação de espanto. Todas as persianas estão erguidas, todas as janelas estão abertas. (...)
"Richard!", Clarissa chama.
"Mrs. Dalloway. Ah, Mrs. Dalloway, é você."
Corre até o outro aposento e encontra Richard ainda de roupão, montado no parapeito da janela aberta, uma perna emaciada ainda dentro, a outra, invisível, pendurada no ar cinco andares acima do chão.
"Richard", ela diz, severa. "Desça daí."
"Está tão bonito lá fora. Que dia."
Dá a impressão de estar louco e eufórico, um velho e uma criança ao mesmo tempo, montado num parapeito. (...)
"Você está me deixando muito assustada", diz Clarissa. "Quero que pare já com isso e venha para dentro. Agora."
Fez um movimento de quem vai avançar e Richard ergue a perna que está dentro da sala até o parapeito. (...)
"Acho que não vou conseguir ir à festa. Desculpe."
"Você não precisa ir. Você não precisa fazer nada."
(...)
"Acho que não vou conseguir enfrentar isso. Você sabe. A festa, a cerimônia, a hora seguinte e a hora que vem depois".
"Você não precisa ir à festa. Você não precisa ir à cerimônia. Você não precisa fazer nada que não queira."
"Mas ainda restam as horas, certo? Passa uma, depois outra, você atravessa uma, mas aí tem outra. Estou cansado"
(...)
"Elas estão aqui, Richard?"
"Quem? Ah, as vozes? As vozes estão sempre aqui."
(...)
"Eu fracassei"
"Pare de dizer isso, Richard. Você não fracassou."
"Fracassei sim. Mas não estou buscando compaixão nem empatia. Só estou triste. O que eu queria fazer parecia tão simples. Eu queria criar alguma coisa suficientemente viva e chocante para poder existir ao lado de uma manhã na vida de alguém. A mais comum das manhãs. Imagine, tentar uma coisa dessas. Que tolice."
"Não é nem um pouco tolice."
"Receio que eu não possa ir à festa"
"Por favor, eu lhe peço, não se preocupe com a festa. Nem pense na festa. Me dê sua mão."
"Você tem sido tão boa pra mim, Mrs. Dalloway"
"Richard..."
"Eu amo você. Isso lhe soa banal?"
"Não."
Richard sorri. Sacode a cabeça. Diz: "Acho que ninguém pode ter sido mais feliz do que nós fomos"
Inclina-se um pouco, escorrega delicadamente do parapeito e cai.
Clarissa grita: "Não..."
Ele parece tão seguro, tão sereno, que por um instante Clarissa imagina que não tenha acontecido nada. Chega à janela a tempo de ver Richard ainda no ar, o roupão esvoaçando, e ainda nesse momento parece que talvez não passe de um acidente pequeno, algo passível de reparação. (...)
Ela sai correndo do quarto, atravessa a porta, que deixa aberta. Desce correndo as escadas. Pensa em pedir ajuda, mas não pede. (...)
Ajoelha-se ao seu lado, põe a mão no ombro inerte. (...)
Clarissa adia, pelo menos por mais um minuto ou dois, o próximo passo, inevitável. Fica com Richard, tocando em seu ombro. (...) Pergunta-se por que não chora. Está consciente do som de sua própria respiração. Está consciente dos chinelos ainda nos pés de Richard, do céu refletido na poça cada vez maior de sangue.
Então é aqui que termina, numa enxerga de concreto, debaixo de um varal de roupas. (...) Gostaria de falar com Richard, mas não consegue. (...) Se conseguisse falar (...) contaria a ele que ela, Clarissa, o amou também, que o amou muito, mas que o deixou numa esquina, havia mais de trinta anos. (...) Pediria seu perdão por ter evitado, naquele que seria seu último dia de vida, beijá-lo na boca e por ter dito a si mesma que o fazia por causa de sua saúde."

(trecho do livro "As Horas" - Michael Cunningham)

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