terça-feira, dezembro 04, 2007

Um

Quando ainda estava dentro do ônibus, o enxergou lá fora. Sorriu quando reconheceu a camiseta vermelha e percebeu que ele havia prendido os cabelos do jeito que ela havia dito que gostava. Mordeu os lábios de nervoso. Pensou em se esconder atrás da cortina. Sentiu que estava tão perto dele. Mais perto do que jamais havia estado. O coração acelerou de tal forma que ela achou que ia passar mal. O motor do ônibus desligou. Era a hora. As pessoas se aglomeravam no corredor, prontas pra descer. Tanta gente, cada um com seu motivo pra estar ali naquela cidade, cada qual com suas coisas para fazer, com seus problemas pra resolver. E o maior problema dela era reunir forças para se levantar dali e caminhar até ele. Eram só alguns passos que os separavam agora. Levantou-se, enfim. Ajeitou os cabelos, colocou a mochila nas costas. Estava pesada demais, a bolsa. Sempre fora desmedida com essas coisas. Fazer malas, escolher o que levar. Era difícil para ela selecionar o que era imprescindível e o que era futilidade. Sempre acabava esquecendo das coisas importantes. Olhou para fora, como quem busca coragem. Lá estava ele. Não via o rosto, só a camiseta. O fluxo de pessoas caminhava, e ela então se misturou àquelas pessoas. Sentiu-se feia. Teve medo dele não gostar dela. Aquela insegurança invasora, que parecia dominá-la, aprisioná-la, paralisá-la. Aquela necessidade de aprovação, de ser sempre a menininha perfeita ao olhar do outro, mesmo que morrendo por dentro para alcançar tal ideal. Não queria mais morrer por dentro. Não com ele. Queria que a aceitasse, somente. Daquele jeito imperfeito. Desejava de coração que tudo desse certo. Enquanto caminhava, tentava respirar. O ar parecia fugir. As escadas. Ficou pensando que ele enxergaria seu all star e tremeu por dentro. Um, dois, três degraus. O último desceu num salto, com os dois pés. Não sabia bem porque havia feito aquilo. Às vezes agia daquela forma impulsiva mesmo. Era de sua natureza. Depois logo se arrependia e se achava boba, tão boba. Será que ele havia reparado? Mas agora não adiantava mais, já tinha feito. Sorriu quando seu olhar encontrou o dele. Tão preocupada ela estava com aquele gestual todo, com aquele parecer impecável, que se esqueceu de reparar nas reações imediatas dele. Ele sorria, e isso deveria no mínimo ser um bom sinal. Mais dois passos, e lá estava. Não dava mais pra voltar atrás. Um abraço, tímido, e ela ali, falando demais, logo de cara. Era quase compulsivo. Falar demais, pensar de menos. Quanto mais falava, menos pensava no medo, na falta de jeito, na vergonha, na insegurança. Procurou sua mão, como havia prometido. Foi tão longo o caminho até ali. Apertou a mão dele, entrelaçada à dela. Era como um sinal. Ele correspondeu, sorrindo. Um beijo, era o que ela queria, só um beijo. Comprovação de qualquer coisa. Confirmação do que era tão incerto. Mas não veio o beijo. Não ainda. Talvez se ela calasse a boca por pelo menos um minuto ele conseguisse dizer algo, fazer algo, mas não foi assim. Inconscientemente, enquanto despejava todos os seus problemas nas costas dele falando e falando sem um minuto de descanso, ela se protegia covardemente daquela certeza. Se escondia, como a perfeita boba que era, morrendo de medo de passar a desejar aquele beijo pro resto de sua vida inteira.

"Vida da minha alma:

Um dia nossas sombras

Serão lagos, águas

Beirando antiqüíssimos telhados.

De argila e luz

Fosforescentes, magos,

Um tempo no depois

Seremos um só corpo adolescente.

Eu estarei em ti

Transfixiada. Em mim

Teu corpo. Duas almas

Nômades, perenes

Texturadas de mútua sedução.

(LXVII)

(Hilda Hist - Cantares de Perda e Predileção)

Nenhum comentário: