sexta-feira, dezembro 14, 2007

Duelo

"Não tinha aquela coisa que se chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela. E só eu posso dizer assim: "que é que tu não me pede chorando que eu não lhe dê cantando?' "
(Clarice Lispector)

Fazia tanto tempo que não nos víamos. Tanto tempo. E de repente, quando a sala está vazia, na hora do almoço, a encontro num canto, parada. Não preciso erguer meus olhos do computador para vê-la. Apenas continuo escrevendo, um leve sorriso no rosto. Ela sabe que não me assusta mais. Lentamente ela caminha, meio dançando, meio saltitando, leve, aquele jeito peculiar dela. Pelo canto do olho enxergo seus pézinhos descalços, pequenos e delicados, e ouço sua voz que num murmúrio cantarola mais uma daquelas canções celtas. Uma daquelas que eu mesma a ensinei a gostar. Ela finge não estar nem aí, mas sinto sua ansiedade em dizer algo, em fazer com que eu a note. Não tenho mais problemas com ela. Nem inveja, nem medo, nem nada.
- Você não me escreveu mais - ela diz, voz chorosa
Meus dedos pararam de digitar. Sempre cobranças, pensei. É só pra isso que ela vem. Olhei para o lado,e ela, num movimento brusco se aproximou e parou o rosto a cinco centímetros do meu. Aquele olhar insano de íris multicoloridas me encarava, ameaçador. Não tinha mais receio. Simplesmente comigo aquele jogo não funcionava mais.
- Não tive vontade - respondo, sem me abalar.
Ela joga meu porta-lápis no chão, espalhando os clips de papel pela sala. Parece irritar-se.
- COMO ASSIM?
Volto a olhar o computador, preocupada em salvar o arquivo em que estava trabalhando.
- Você sabe que as coisas não são assim tão simples.
Ela senta na minha mesa, deita nela, folgada, inconveniente, o vestido azul que eu mesma escolhi se espalha pelo teclado. Sua pele tão branca chega a me afligir. Os cabelos vermelhos parecem mais brilhantes do que nunca. Ela está linda, como sempre. Com o documento salvo, me afasto dela e da mesa, empurrando a cadeira de rodinhas para trás. Ela me olha de cabeça para baixo, franzindo as sobrancelhas quase inexistentes, tentando uma ameaça.
- Eu PRECISO de você... Você não pode me negar isso... Não pode... É INJUSTO DEMAIS me negar esse direito. Meu direito de viver, de existir!!!!
Dou risada, alto. Uma gargalhada. Me levanto.
- Eu nego seu direito de viver, Melissa? Compreende bem o que está dizendo? Prestou atenção no que disse?
Ela se levanta, raivosa, batendo com a mão no monitor, que cambaleia mas, ainda bem, não cai.
- VOCÊ NEGA! EU DEPENDO DE VOCÊ!! - notando meu olhar de descaso diante daqueles gritos, ela percebe a falta de empatia e diminui o tom de voz bruscamente, o que deixa mais nítida sua vontade de tentar me manipular - Minha querida... - ela se aproxima e ergue os dedos na direção de meu rosto paralisado - Eu gostaria tanto de caminhar com minhas próprias pernas, mas... - os dedos magros e frios dela, com as unhas curtas pintadas de preto e descascadas encostam nos meus cabelos e os acariciam. Sinto asco - Eu não posso, meu amor... Preciso que me ampare, que me empurre, que sonhe por mim...
Balanço a cabeça, dou mais alguns passos para trás...
- Você é tão falsa. Não é daquele jeito que eu te descrevo. Nunca foi. Sempre foi cruel, vil, maldosa, inconsequente. Só surge daquela forma doce porque empresto MEU jeito de ser pra você...
Os olhos dela se arregalam, demonstrando a loucura patente. Ela avança em minha direção e eu tento me afastar, esbarrando num vaso de planta e derrubando processos no chão.
- EXATAMENTE! Por isso você vai sentar ali naquele negócio - ela não piscava, apontava o computador, descontrolada - E VAI ME TRAZER DE VOLTAaaaaa... Agora!!
A porta se abre, quase que num estrondo. Rapidamente me abaixo para recolher o porta- lápis, os clips, os processos do chão. Ela desaparece. Perguntam se eu estava sozinha, dizem que ouviram gritos lá fora. Respondo que era um mal educado qualquer ao telefone. Sento diante do computador, sem piscar, e escrevo, escrevo, escrevo, olhos arregalados, multicoloridos, multifacetados, quase sem respirar. Dessa vez vai ser um pouquinho diferente, mas você sobreviverá, meu anjo...
O que eu não faço por você, minha menina?? O que eu não faço??

Um comentário:

Lucas disse...

Ok, você tem tomado seu remédio? o.o